terça-feira, janeiro 26, 2010

Desígnios


Toda a experiência do amor tem o gosto melancólico de uma simulação. Talvez o amor seja uma terceira entidade que se interpõe entre duas pessoas, suscitando-lhes desejos de aperfeiçoamento incompatíveis com a consumação que define a humanidade. Acabei por reconhecer que não é de mim nem do Álvaro que eu tenho pena; lastimo o exílio sobrenatural dessa terceira entidade, rodando no vazio de um firmamento demasiado alto.


Inês Pedrosa in «Nas Tuas Mãos»





As certezas não são pródigas, não conduzem a nada. Só as dúvidas trazem vontade de enxergar mais longe, procurar algo que nos satisfaça, que nos dê firmeza naquilo que consideramos as nossas convicções e o tempo nos mostra que não eram assim tão seguras. O que ontem era verdade já não nos parece tão real assim nos tempos que passam, porque nós também mudámos, se não tão depressa, pelo menos fomos acompanhando de longe com alguma relutância essas novas esferas e o tempo se encarregou de provar que os outros é que tinham razão.

Não é muito agradável, claro. Custa muito menos escrever ou dizer, do que sentir cá dentro e dói um pedaço, sejamos honestos. Mas a César o que é de César e dou comigo a ponderar até que ponto temos razão defendendo a todo o custo alguns valores que, não deixando de sê-lo, não estão à altura já de servir os interesses que se impõem no mundo globalizado que impera nas nossas vidas, ainda que queiramos a todo o custo negá-lo. As malhas envolvem todos, cada vez mais finas, nem há como escapar. Todos nos acorbertamos debaixo do mesmo gosto pelas calças de ganga e sapatos desportivos, cozinhas funcionais e sem alma, casas movidas a computador, as artes digitais, as viagens low-coast, as comunicações em escrita digital. É tudo rápido, tudo tem de ser feito muito depressa que a vida não chega para tantas solicitações e é preciso experimentar tudo. 

Eu tenho dúvidas quando se vai alertando para a necessidade – urgente, essa sim! – de reprogramarmos a nossa postura perante o planeta, de refrear o consumismo para evitar desperdícios estendendo a vida de cada um dos nossos teres, de ensaiar moderação nos gastos de energia, de lembrar alguns procedimentos antigos e recuperá-los, renovando-os. É tudo possível, desde que tenhamos a consciência do mal que fazemos, desde que tenhamos força para mudar.

E mudar começa por nós. Mudar porque o sol que brilha agora é diferente do que ontem se escondia atrás das nuvens que prometiam chuva. Às vezes mudar apenas a forma de amar.

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Hora dos Mais Novos


Pergunto ao vento que passa notícias do meu país
E o vento cala a desgraça e o vento nada me diz

Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas
E os rios não me sossegam, levam sonhos deixam mágoas

Levam sonhos deixam mágoas, ai rios do meu país
Minha pátria à flor das águas, para onde vais? Ninguém me diz.

Se o verde trevo desfolhas, pede notícias e diz
Ao trevo de quatro folhas que eu morro por meu país

Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão
Silêncio é tudo o que tem quem vive na servidão

Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia canções no vento que passa

Mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não!


Manuel Alegre






A idade, os anos vividos, o tempo de permanência nesta dimensão, todos os eufemismos usados para o simples termo velhice, dá aos que a possuem, aos que nela já estão instalados, uma riqueza que não contempla os mais novos, um capital de que não usufruem. 

Desde logo recordo a máxima usada por meu pai: os novos são tolos e não sabem disso, os velhos são tolos, mas sabem que o são. Esta tolice aqui usada, deve ter o sentido da bobagem, termo tão comum em todos os níveis de língua do povo brasileiro. Há um ditado também que afirma, na mesma linha, que de médico e louco todos temos um pouco, abusando, quantas vezes, num e noutro caso, com maior ou menor eficácia no resultado pretendido.

Há, no percurso da vida, o chamado período de graça onde tudo acontece, sem oportunidade já para as tolices da juventude que se vai distanciando, bombardeada por todas as vicissitudes compostas por realizações, interesses, responsabilidades, sobrevivência; a hora chegada do tempero, dos condimentos que irão marcar o sabor final. 

A velhice. O tempo das rugas e das cãs. O tempo de saborear o respeito dos outros pela sabedoria de vida, a experiência que os mais novos não tiveram e pode ajudá-los a pensar melhor, não mais do que isso. Porque é nestes que reside a força, a valentia, a vontade, o destemor da inexperiência que a soma dos anos vai apagando.

Na velhice, colados os rostos do passado e do presente, dos sonhos e da realidade, é o tempo do repouso, para sentir a paz, passar mensagens de vida, dizer que o amor permanece como presente aos vindouros, como dádiva ao futuro. 



segunda-feira, janeiro 11, 2010

Perda



 Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento,
Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.

Adormeço sem dormir, ao relento da vida.
É inútil dizer-me que as acções têm consequências.
É inútil eu saber que as acções usam consequências.
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.
Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.
Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.
Álvaro de Campos





O sol, rodando baixo depois da chuva, traz a luz de que preciso para filtrar as memórias desvanecidas pelos anos, pela lonjura.

Vou então ao encontro da casa lá em baixo, depois de passado o quimbo, o carro já desligado até se deter quieto, depois da vala, defronte da porta com aquela chave enorme – que será feito daquela chave que já nada tem para abrir? 

A casa ruiu, a porta terá sido queimada numa cubata qualquer. Só o espelho do rio transbordando cresce ao fundo, cobrindo a anhara, deve ter saudades de meu pai, vigilante, no seu casaco de couro antigo, com uma pele já coçada, que meu irmão usou depois.

Depois, foi há tanto tempo!

Depois, foi um regresso que nunca deveria ter acontecido, nunca assim, depois foi o abandono que nunca deveria ter tido lugar, nunca assim. Depois, foram outros regressos, outras partidas, a morte traiçoeiramente carregando tão cedo as raízes, os suportes, deixando aquele montão de ruínas, levadas as telhas, as madeiras.

O que sobra está aqui, comigo. Sou eu. Sou eu o adobe que se desfaz, na erosão de cada ciclo de chuvas e cacimbo.


terça-feira, janeiro 05, 2010

Presunção

 
«Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa.»
 




Uma vez chega para viver quando a vida é grande cá dentro, porque nem cabe mais nada. É só preciso arrumá-la para que saibamos onde encontrar o que precisamos nas encruzilhadas que vão surgindo, para que as memórias ajudem a orientação de nós.

E contaram-se cinco décadas depois que desapareceu o homem que me acertou os passos quando a juventude se perdia pelos sonhos que a vida não poderia concretizar. O primeiro encontro foi de espanto e recusa, no primeiro ano de faculdade. Mas a sua morte prematura fez-me encontrar a beleza e a verdade das palavras, na sua visão diferente dos valores humanísticos tradicionais, aquele olhar sereno que me pareceu isento dos sentimentos como me ensinaram a demonstrar, os sentimentos que afinal ele vivia intensamente, tão profundamente, tão lucidamente, apenas despojados de lágrimas correndo pela face, um rio de intenso caudal deslizando no íntimo, na certeza da foz.

Para além do escritor estava o homem pied-noir, preso à terra que o vira nascer e lhe moldara o sentir, entregue depois à terra que o acolhera e lhe dera o conhecimento novo. Nunca soube destrinçar o amor que brotava pelas duas, clamou pela igualdade e solidariedade entre todas as raças e credos. Não falou de religião, falou de amor e entendimento. Identifico-me com ele, é na sua obra que busco as minhas certezas. 

Publicou «L’Étranger» no ano e no mês em que nasci. Sinto que o escreveu para me mostrar o caminho. Esta, a minha vaidade.