sábado, novembro 26, 2011

A Terceira Guerra


Não houve decerto a gota que fez transbordar o vaso, mas o simples reconhecimento de que tinha já transbordado. Aconteceu foi que a humanidade em geral se modificou e no quadro universal a persistência no logro a denuncia como logro. Um novo equilíbrio se instaurou no modo generalizado de se ser humano por sobre o desgaste do anterior, e o erro denunciou-se como a ausência do cómico da graça de que ríramos ou da sedução da mulher que amámos.
Virgílio Ferreira in «Pensar»


Ontem ouvi o Fausto soando pelas Montanhas Azuis, o mesmo Fausto que conheci na sua juventude, dedilhando a guitarra no final de curso liceal, num espaço de Portugal antigo, nos idos sessenta do outro século.

Ontem ouvi falar do percurso de um país de quase 900 anos de História, um país de diáspora, um país que pulsa em arritmias de crises mal curadas, incapaz de tomar decisões próprias, saudosista eterno dum Sebastião diluído no nevoeiro dos séculos, sujeito aos Wellington e Beresford, sem se dar conta que existe em cada um de nós aquela gota de água capaz de formar um curso de água, capaz de formar um rio, capaz de afastar por largos quilómetros a fúria do mar pintando-o de barro, como o Zaire ou o Amazonas.

Por querer ou sem querer, estamos em guerra. Não uma guerra de trincheiras, não uma guerra de aviões e torpedeiros, não uma guerra de catanas e canhangulos. Digo de uma outra Grande Guerra, saída do século novo, uma guerra de números, num terrorismo novo, comandado por agências ditas de rating. E não é uma guerra leal.

O dia apaga as cores devagar quando a noite vem. É a hora mágica do acender das fogueiras eternas de todos os lugares da Terra, onde o lebréu de aquece e os pensamentos dos Homens passam a uma nova dimensão.



domingo, novembro 13, 2011

Continuidade


Contava-se uma anedota acerca do meu pai, que era músico. Encontrava-se ele algures com uns amigos, quando, provindos de um rádio ou de um gramofone, ecoam os acordes de uma sinfonia. Os amigos, todos eles músicos ou melómanos, reconhecem imediatamente a Nona de Beethoven e perguntaram ao meu pai: «Esta música é o quê?» E ele, após uma longa reflexão: «Isso parece ser Beethoven.»
Milan Kundera in «A Cortina»



Os conselhos dos velhos perdem-se pelas décadas tempestuosas da vida, lembrados fugazmente, respeitados raramente, mas marcando a presença deles quando um dia há tempo para recordá-los, tarde da vida.

Olha, minha filha: não te deixes por lá ficar em casa; se o teu marido te convidar a ires ver um burro pendurado pelo rabo, vai ver o burro pendurado pelo rabo!

Pode ficar ciente de que não esquecerei o conselho, tomado na devida conta, mas não esquecerei, avozinha!

Como não esqueceu o avô, que se perdia pelo jogo e queria a neta a jogar bridge, mas ela sempre embirrava com «o morto» quando lhe calhava em sorte. Afinaria a inteligência e a concentração, mas o jogo sempre lhe parecera uma perda de tempo. No xadrez segue os cavalos, minha filha, segue os cavalos!

A mãe e os avisos surgindo a todo o propósito, com segundas intenções: segura a malha, minha filha, segura a malha, se a perdes é um trabalhão ir buscá-la!

Que dizer agora aos mais novos quando há um sol que se sente coado pelas cinzas que cobrem este céu, há um calor meigo na tarde quieta a falar de mansinho, a dizer que vai embora porque é outro tempo, é o tempo das neves brancas na serra, da geada a cobrir os campos pelas madrugadas frias? Que dizer quando as cores esmaecidas das folhas anunciam os esqueletos esguios das árvores em prece além de que a primavera as vai ouvir? Que dizer quando eles já sabem tudo, que dizer mais, senão que as estações se sucedem, se renovam, se pintam de cores, se desfazem em cor de terra, parece que tudo arde e de repente a chuva acontece?

terça-feira, novembro 08, 2011

C’est la Rose l’Important


 
A realização deste casamento, bem como a sua validade, tem sido alvo de controvérsia e polémica desde o século XV até à actualidade, até porque, a ter existido, podia ter alterado o rumo da sucessão ao trono após as Cortes de Coimbra de 1385 e, consequentemente, o rumo da História. A diferença de opiniões começa logo no próprio século XV, com os cronistas que escreveram sobre este período. Assim, se para Rui de Pina é ponto assente que Pedro e Inês casaram, embora tivesse havido quem levantasse algumas dúvidas porque

«não fez esta declaração logo como reinou, mas daí a três anos, & porém ele a este tempo, a mandou daí em diante chamar, & intitular, Rainha de Portugal e a seus filhos Infantes»

já Fernão Lopes desacredita as palavras do rei ao achar muito pouco provável

«que um casamento tão notável e que tantas razões tinha para ser lembrado, houvesse em tão pequeno espaço de esquecer, assim àquele que o fez co o aos outros que foram presentes, não lhes lembrando o dia nem o mês.»

Ana Rodrigues Oliveira, in «Rainhas Medievais de Portugal»




Tem de haver grandeza na humildade da perda. 

Aos vencedores o pódio, a glória, o champanhe derramado, as primeiras páginas dos jornais, o lugar mais alto nos escaparates dos livros, o nome inscrito na galeria, na rua duma cidade qualquer, um busto numa praça, num jardim. Aos perdedores, a glória de se terem batido com os maiores, a coragem da luta e o reconhecimento da sua falta de zelo.

Parece que Napoleão conviveu com um homem grande na arte da liderança, da mobilização em torno de um objectivo, um homem que ele não estimava particularmente, mas a quem reconhecia as qualidades que lhe faltavam. Esse homem foi Talleyrand, e o segredo do seu sucesso para a motivação e empenho dos seus colaboradores, estava precisamente na condenação do excesso de zelo. Chegou a dizer que no zelo entram sempre três quartas partes de estupidez.

É que a falta de zelo não é sinónimo de incúria. É tão só desvalorizar aquelas pequenas coisas que fazem a diferença entre os que agitam a garrafa no pódio e os que recebem os salpicos na hora da glória. Há os que são sempre vencedores porque são zelosos e o seu nome, obra, fica gravado na taça. Depois há os outros, os sem nome gravado, senhores de uma obra sua, grande porque sim, que não cabe na estreiteza da placa, na estreiteza de um nome.

Nem é sem motivo que Fernando Pessoa não conseguiu SER inteiro sem os múltiplos heterónimos, ele, que em vida nunca subiu ao pódio.