quinta-feira, junho 16, 2011

Eclipse


São contra a morte, ou contra a vida, as vozes
que tão fugatamente desconversam?
São contra a terra ou contra o céu as pausas
quase imperceptíveis que retornam?
São contra as coisas ou são contra os homens
certas singelas notas que persistem?

Ou a favor? Não sei. Talvez que sejam
uma existência que se vive ouvindo
apenas o fluir da música nascida
de não fluir mais nada que não seja a vida.
Jorge de Sena


Gosto de dormir num quarto com janela virada a Nascente. 

Que a luz me chegue ténue pelas madrugadas e eu possa sentir-lhe a coloração logo mais intensa e colorida pousada na parede em frente, filtrada pelas persianas, quieta, ou de preferência em sombras bruxuleantes de folhagem através do vidro transparente.  

O começo do dia, o acordar das manhãs, trazem-me sabores, odores, acordam-me os sentidos devagar, quantas vezes deleitados nas recordações dos tempos da infância, olhos fechados a tentar recordar os sons, os sons esperados, os sons ansiados, os sons que ficaram gravados, as vozes.

As vozes que não voltam mas que identificaria entre mil, com o instinto de uma andorinha dos trópicos ou um pinguim na Antárctica. É o tempo mais prenhe do dia, em breves minutos o pensamento a ordenar o que surge em catapulta do que há para concretizar, logo depois olhar em volta e ter a certeza de que o mundo não foi escrito a preto e branco. Entre o nascer e morrer existe a vida que os meus sentidos captam decididamente em tonalidades múltiplas, das mais suaves às mais vibrantes, capazes de ferir o olhar ou dar-lhe encantamento.  Também nas duas tintas sem cor, quando a Lua se recorta envergonhada a subir no horizonte, a fugir do beijo da Terra.

Sou eu que tenho de usar esse pincel de luz matinal quando tudo se esvai, quando não há sol ou a tempestade ruge apagando todas as vozes.

quarta-feira, junho 08, 2011

O segredo da chave


Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.

Ténue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
 

Um segredo só é segredo se for solitário, se pertencer a um só. A partir do momento em que se partilha com alguém deixa logo de o ser, perde a magia.

O vento sopra os segredos pela folhagem e ela logo enceta um cicio, uma dança, um farfalhar que acorda os sentidos dos seres que pululam, se acolhem, se escondem nos ramos, nos troncos, na manta rasteira circundante. E eis que adivinham a chuva ou o fogo, o suão ou o frio do inverno a chegar. Ou algum predador.

Os segredos que o são de verdade têm a chave dentro deles como a lua nova, há que esperar que o sol nos mostre o caminho da face, paulatinamente, primeiro um sorriso tímido, depois mais rasgado, até ao descobrimento final do riso aberto, o rosto deslumbrante.

A palavra pequenina «chave» consta no dicionário com mais de uma vintena de entradas, para além das palavras compostas dela, para além da clave, que também é chave, por via erudita.

Pois a chave é uma senhora muito esquiva, e afinal tão fácil de achar se nos dispusermos a isso sem preconceitos. Acode-me a história atribuída a Colombo, do problema de colocar o ovo de pé; a chave logo ali, ninguém tinha dito antes que não se podia quebrar. Preconceito, preconcebimento, se preferirem – não sei se a palavra existe dicionarizada. 

É isso mesmo. Há chaves e chaves. Chaves físicas e não físicas. Chaves de segredos que se procuram uma eternidade e palpitam tão perto de nós, prontos a satisfazer a curiosidade que acalma os sentidos. Ou não. Mas a descoberta da chave, só por si, é uma conquista, ainda que o segredo se mantenha inviolável, por mera decisão dos intervenientes. Também se chama livre-arbítrio. Pela negativa.