domingo, junho 27, 2010

A mentira dos astros


E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo
Em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
E os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois.
Vinicius de Morais




A alegria e a dor convivem sob o mesmo tecto.

Nem é possível amar a lua e apenas senti-la quando parece virar-nos as costas, numa lua nova que se renova para depois nos dar de mansinho uma levíssima curva de luz, como porta entreaberta para chegar ao esplendor da lua cheia, numa claridade de luz branca, apaziguadora de todas as incertezas, numa entrega total.

Mas ainda assim, quantas vezes escondida atrás das nuvens, do nevoeiro que cai antes da noite, atrás de tempestades que se arrastam por dias, semanas, e a lua de novo fechando a porta, de manso, para dar tempo aos homens de olhar as estrelas, para não ofuscar o brilho delas. Porque essas estão lá, para esplendor dos nossos olhos ainda que desaparecidas há anos-luz, séculos para o tempo dos homens na Terra.

O que construímos, o que criámos, aquilo a que demos vida e cresce, cresce, fugindo das raízes, organizando-se em árvore, flores, fruto, ou apenas crescendo enrolando o que toca, tapando, escondendo, debruando de verde as ruínas, os cacos entretanto abandonados, o que fazemos aqui depois?

Tudo se renova de uma forma ou de outra. Nós também, assim queiramos guiar a energia que os astros atiram para nós, incansavelmemente. Mas é preciso muita força.

sexta-feira, junho 18, 2010

JOSÉ SARAMAGO


O primeiro leitor da carta foi o secretário de estado pêro de alcáçova carneiro que a entregou ao rei, ao mesmo tempo que dizia, Morreu salomão, meu senhor. Dom joão terceiro fez um gesto de surpresa e uma sombra de mágoa cobriu-lhe o rosto. Mande chamar a rainha, disse. Dona catarina não tardou, como se adivinhasse que a carta trazia notícias que lhe interessavam, talvez um nascimento, talvez uma boda. Nascimento e boda não deveriam ser, a cara do marido contava outra história. Dom João terceiro murmurou, Diz aqui o primo maximiliano que o salomão. A rainha não o deixou acabar, Não quero saber, gritou, não quero saber. E correu a encerrar-se na sua câmara, onde chorou todo o resto do dia.

José Saramago in «A Viagem do Elefante»




Apagou-se uma voz.

Nem sempre a mais amada pelos seus pares, pelos leitores mais conservadores, apreciadores de uma escrita melodiosa que ele não dominava. Nem quereria, quem sabe. A mensagem que tinha para divulgar passou-a sobre todos os outros, foi ele o escolhido, foi ele quem trouxe para a Língua Portuguesa o primeiro Prémio Nobel de Literatura. 

Oriundo de famílias humildes, nunca escondeu a sua origem, antes adoptando como sobrenome um apelido que o ligava a ela indissoluvelmente. Foi coerente com os seus ideais, sempre de olhar crítico e duro sobre a sociedade onde subiu a pulso, riscando a direito, sem ouvir outros sons. Assim se isolou em Lanzarote, cercado de pedras e mar, suavizado por Pilar, a mulher que lhe deu vida quando a vida começou a faltar.

Estou de luto. Calou-se mais uma voz nas Letras portuguesas.


segunda-feira, junho 14, 2010

Caminhos



Mon amour pour avoir figuré mes désirs
Mis tes lèvres au ciel de tes mots comme un astre
Tes baisers dans la nuit vivante
Et le sillage de tes bras autour de moi
Comme une flamme en signe de conquête
Mes rêves sont au monde
Clairs et perpétuels.

Et quand tu n'es pas là
Je rêve que je dors je rêve que je rêve.

Paul Eluard



Não sei o caminho. Só quando o tecto se abrir e o azul derramar sobre a anhara, de novo a desenhar o caminho que conduz ao rio, então saberei olhar outra vez as tonalidades de sépia do capim seco, dos morros de salalé subindo em prece, das lagoas lamacentas que ladeiam o rio, da areia fina por entre os tufos de ervas altas, verdes, encharcadas.

Aqui o sol também aquece e as flores desdobram as cores sem nome em cambiantes de luz, flores mais perfeitas em jardins cuidados, cheirando a perfumes e perfumes cheirando a flor. Os caminhos são marcados e lisos, há túneis e pontes pousadas de leve nas águas, caminhando nelas por entre a bruma, galgando o rio. Nem há que enganar. É só seguir o rio até à foz e o estuário mostra os pássaros classificados que em cada ano passam e pousam e procriam. Os homens passam longe e são delicados, não espantam, não caçam, não têm espingardas.

Segundo os clássicos latinos e gregos (conforme refere a obra «Le Livre des Êtres Imaginaires»), as Lamies eram seres que habitavam a África e cujo corpo de mulher belíssima até à cintura continuava depois em forma de serpente. Alguns as consideravam feiticeiras, outros monstros malfeitores. Não tinham o dom da fala, mas o seu canto era melodioso e enfeitiçava quem o ouvia. Nos desertos, atraíam os viajantes para em seguida os devorar, e dizia-se que tinham uma longínqua origem divina, eram fruto dos muitos amores de Zeus. Moviam-se com tal agilidade que se confundiam com pássaros.

Não tenho a certeza se as aves se importam, sei que hoje, aqui, as gaivotas enchem a cidade, as cidades, não procuram o peixe para alimento, antes as sobras dos homens. E sei, porque me dizem, que há muitas aves a caminho da extinção.

sábado, junho 05, 2010

Força




Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
Dói-te alguma coisa?
– Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está a ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
O que fazes quando te assaltam essas dores?
– O que melhor sei fazer, excelência.
– E o que é?
– É sonhar.
Mia Couto



Quando não se tem corpo para acompanhar o desejo não cumprido, ou porque a idade ainda não baste ou porque o corpo já não suporte, as dores cumprem-se com o ritual que cada um define à sua medida. O pássaro que existe dentro de nós, se não há grades que o sustenham, abre as asas e voa, luta pela vida e sobrevivência; se a porta se mantém fechada, queda-se embalado no poleiro que balança no ar que respira, ciente da água e alimento sempre ao alcance do bico.

E então os mais loucos fantasiam em trinados por entre as grades, que ecoam nas paredes lisas e duras dos prédios, perambulam nos ventos, soam perdidos enfim na folhagem, nas ramarias onde pertencem. Se o canto se repete e é sentido, se a força permanece, talvez os canaviais recolham a melodia e a façam soltar um dia na flauta dos pastores.

Escrever – sonhar – é assim o que resta quando as grades são mais fortes, quando a portinhola não roda, quando é mais precioso o brilho das penas do que o chamamento dos ares que nos despenteiam e fazem a vida girar de assombro.