Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Álvaro de Campos
A linguagem elaborada do ser humano distingue efectivamente o homem dos outros animais. É poderosa na sua versatilidade porque revela todas as gradações de sentimentos capazes de mudar o mundo, de mudar as relações entre os homens, de mudar o homem sozinho. Capaz até de estabelecer a relação necessária ao entendimento com os bichos.
A linguagem consegue a paz, a linguagem faz a guerra. Ainda assim, as mesmas palavras proferidas ou escritas só são inteiramente esclarecedoras se complementadas com a prosódia e as outras linguagens não verbais. O valor da escrita sobrepõe-se porém à oralidade – nem é sem tino que o povo diz comummente: palavras... leva-as o vento! – A escrita regista e torna refém do discurso quem a utiliza.
Há agora uma escrita alada, mista das duas anteriores, que nobremente se insinua e instala nos salões da comunicação. É a escrita do teclado, da Web, da intemporalidade, coloquial e aberta a todos os continentes. Ela vai destronar os prazeres únicos que alguns, cada vez mais poucos, ainda sentem de delinear a escrita, deixar no papel o sulco dos seus pensamentos, em movimentos inconscientes das mãos desenhando as letras. Esquecidos já do toque suave da caneta, dos dedos borrados de tinta, esquecidos do cheiro dela, esquecidos do afago do mata-borrão. Nem há como fugir, tal a intensidade e variedade das suas propostas, passando mensagens de escrita, de imagem, de som e de cor, arquitectando fantasias, tecendo metáforas.
Eis os anos limando inexoravelmente algumas vontades, acalmando curiosidades, sossegando impulsos. Mas deixando intocável o prazer de reler aquele livro, aquela escrita, aqueles poemas, de rever os filmes intemporais, de escrever a vida.