terça-feira, janeiro 29, 2008

Talvez o Vento...


How many times can a man turn his head

And pretend that he just doesn’t see?


How many ears must one man have

before he can hear people cry?


How many deaths will it take till he knows

that too many people have died?


The answer, my friend, is blowing in the wind

The answer is blowing in the wind…

Bob Dylan







Não é a primeira vez que a África em que nasci me acontece de forma inusitada.

Desta vez, foi no filme O Fiel Jardineiro (baseado num romance de John Le Carré) de Fernando Meirelles, que a imensidão da paisagem africana se abriu para mim em toda a sua intensidade e encanto e, na mesma proporção, na crueza da sua enorme fragilidade.

Puxando os cordelinhos no palco de marionetas, a ganância, a falsidade, a luxúria. No outro extremo, o idealismo, o amor e a fidelidade, a pureza de sentimentos; a confiança, que não mora no mesmo departamento da lucidez quando a falta de sinceridade abre espaço para a dúvida, em situações de beleza ímpar, pequenos quadros de imagens magníficas que sugerem todas as interpretações.

Sei que o filme já não é muito recente, mas recentes se mantêm as questões sociais e políticas num continente continuamente massacrado por todas as formas possíveis de corrupção e desumanidade. O título surgiu-me apenas familiar, mas revelou-se uma surpresa, encantou-me por todos os motivos que associo a largos minutos de evasão do quotidiano que caracteriza a vivência de um europeu médio, preocupado com simples contrariedades que lhe alteram a serenidade dos dias. É um libelo, uma acusação ao mundo de que faço parte e deveria envergonhar-me.

É sobre a impotência dos bons.


quarta-feira, janeiro 23, 2008

GENEROSIDADE

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada

Vinícius de Morais




Esta fotografia circula pela Internet.

Traz-me à memória décadas de luta pelos circos do ensino, pelos palcos da salas de aula, na partilha de outros mundos de crescimento mútuo. Dos tempos em que era preciso tratar temas diferenciados e únicos a um tempo: amor, solidariedade, fraternidade, igualdade, e por aí adiante.

É fácil acender nos jovens o espírito solidário quando os ideais são tudo, a amizade a vida, a curiosidade um vício a cultivar. Apontar caminhos é a função pedagógica e os exemplos abundam, se bem que as definições sempre mais difíceis, mais redutoras. Aprendi com a simplicidade dos mais novos que a solidariedade é a amizade como dádiva a quem não se conhece.

É mesmo isso. Mas muito mais fundo, raiando a utopia, porque teremos de nos despir de nós, teremos de sentir escorrer de nós o sangue dos outros para que a entrega não tenha sabor a caridade, palavra de que não gosto na conotação que me passa.

Esta imagem tira-me a voz.

Faz escorrer dos meus olhos o rio que escorre pela minha terra em doçura e beleza e prodigalidade, recebe nele o Luena, toma outros rumos, atravessa um continente distribuindo energia e espraia-se à chegada ao Índico num delta marcando o seu lugar entre os maiores. Agora a beleza do Zambeze semeia a fome e a dor.

Esta imagem também me lembra isso.

Mas vai muito mais fundo.

É a nobreza da generosidade.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

O Poder da Vida


«Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha fiança: homem muito homem que fui e homem por mulheres! – nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida.»

João Guimarães Rosa





Em conciliábulos com a razão da escrita, desta vez mais concretamente quanto à manutenção de um blogue, não me parece excessivo voltar ao tema. Já por mais de uma vez me referi ao que poderá estar bem no fundo de cada um de nós ao sermos tentados a passar à escrita – para um público que nos é, e para quem somos, totalmente desconhecidos – algo do que temos de mais íntimo, as nossas memórias mais cruas, as mais doces, quiçá as mais dolorosas e magoadas; aquele desabafo que às vezes ecoa em nós de modo insistente, ou tão só a expressão de um contentamento ou uma revolta momentâneos.

Escudados por anonimato a maior parte das vezes, um anonimato que se vai esbatendo à medida que se criam os laços de que falava Saint Exupéry – a domesticação do próprio perante os outros viajantes do espaço – emergem personalidades nem sempre visíveis no quotidiano apressado que nos distorce o corpo e o espírito que transparece. Por defesa, é claro.

É também um descobrimento de nós próprios em plena liberdade, deixando assomar o que guardámos fundo, o que nos afoga, sem peias, sem constrangimentos, sem receio de ironias, também sem ferir aqueles que já sabemos que não aceitam esta parte de nós, esta forma de ser que é parte integrante do que somos, aquilo que foi borbulhando e alterou no tempo o sorriso e o gesto.

Há porém um aparente contra-senso nesta forma de liberdade que referi antes, porque os laços que se estabelecem são afinal tão fortes na sua delicadeza – hoje vou tomar chá ao PPP – que nem queremos imaginar que possam deixar de estar presentes no nosso mundo já não só virtual. E sentimo-nos de liberdade desprovidos, presos de afectos, de alguma forma obrigados a manter o contacto porque fazemos falta. Na mesa do chá. No túnel da vida.

Bom sentir isso na solidão dos passos.



domingo, janeiro 13, 2008

Sortilégio


«Agora, ao rever o passado, viu em que sulco profundo tinha mergulhado. O pior de cumprir um dever é que aparentemente não dava para fazer mais nada. Pelo menos era a opinião que os homens da sua geração tinham. As divisões constantes entre o certo e o errado, honesto e desonesto, o respeitável e o reverso, tinham deixado pouco espaço para o imprevisível. Há momentos em que a imaginação de um homem, tão facilmente subjugado à vida de todos os dias, repentinamente se ergue acima da rotina diária e avalia as longas espirais do destino.»

Edith Wharton




A escrita é sempre um acto solitário. E solitário porque é a expressão de pensamentos através da mão que escreve num papel ou dos dedos que digitam num teclado. E já agora, jogando com as palavras, é também um acto solidário, não necessariamente para com os outros, mas para com os próprios entendimentos.

Voltando à primeira palavra, direi que por aqui me faltam outras, parecendo incoerente com o título anterior de que não faltam as palavras. A solidão de quem escreve é relativa, ninguém escreve só, desacompanhado, sem espectadores ainda que fantasiosos. O povo humilde e sábio usa «falando com os seus botões»; em tempos da Antiguidade Clássica, Horácio, mais pretensioso, não sei se tão sábio, escreveu naquela ode sem par: «ergui um monumento mais alto que as pirâmides, mais perene que o bronze». Na imaginação pessoana presume-se «emissário de um rei desconhecido» e Agustina diz que «as memórias procriam como se fossem pessoas vivas».

O sortilégio da escrita acontece simplesmente. Como na praia, manhã cedo, quando dos orifícios na areia espreitam duas patas, três; depois os pequenos caranguejos espalham-se pela praia num rumorejar que se mistura com o bater manso das ondas na maré vazia. Outras vezes não acontece nada. Então, é preciso caminhar devagarinho e colher aqui e além, escolhendo, as pedras mais lisas, a concha mais colorida. Mesmo de Inverno quieto, sem chuva, sem marés vivas, quando as tardes já seguem espreguiçando-se pelas horas, o imprevisível acontece.

O problema surge quando o que desejamos contar é tão verdadeiro quanto é inverosímil, tão doloroso como incurável, tão gritantemente real que magoa. Aí há palavras para dizer, mas é preciso escolher tanto, é tudo tão ténue, tão frágil, tão subtil, que pode quebrar o equilíbrio.

Deixemo-nos então quietos, olhando o mar, protegidos pelas rochas do vento que ainda sopra.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Não Faltam Palavras


Sem pretender comentar afirmações de vários escritores actuais sobre a dificuldade de encontrar vocabulário em língua portuguesa para a temática do sexo na nossa literatura, transcrevo a seguir um trecho da prosa de Aquilino Ribeiro.

Talvez falte leitura, talvez falte alguma arte.

(Talvez sobejem os salões de depilação.)

Não faltam palavras.




«As cobras agora enroscavam-se umas nas outras e os pardais espenujavam-se, bicando-se, por entre os ramos floridos. Rolando-se enervada e brincalhona, Eva descaiu sobre nosso pai. E no peito lanzudo dele as narinas de Eva ruflaram. Depois, com meiguice nova, as suas formas cheias roçaram a musculatura seca. Ao mordê-la nos bicos dos seios, proferiu ela em voz quebrada:

– Rico sabor há-de ter o fruto misterioso do bem e do mal!

– Porquê?

– Se não tivesse, não era assim proibido!

Adão suspendeu-se a reflectir. Depois proferiu:

– Mas não era melhor que o nosso amo nos dissesse: o fruto, ei-lo! Agora, amigos, vejam lá no que se metem!

– Quem sabe lá se uma pessoa se não tentava mais depressa!

– Tu serias capaz, eu não!

– Sei lá!

Como estivessem muito próximas, involuntariamente as fontes frescas de suas bocas juntaram-se. E pareceu a qualquer deles que era doce como o mel, um mel inefável. Adão estirou a perna num esticão nervoso; gaiata a rir como a água nos seixos, nossa mãe apertou-lha entre as suas, pronunciando:

– Olha para ali… olha como se enroscam as serpentes…!

E Eva, à semelhança, tentou enliçar-se nos braços rijos de Adão. A nuvem misteriosa, recurvando as pontas, lançara sobre o parque um velário, onde as laranjas quase luziam como pequeninos sóis a distância. Um suspiro de mil suspiros errava no ar.

– Faze-me como as serpentes e como a nuvem – disse para Adão a tentadora e subtil.

E o homem acedeu. Na encontrada dualidade, dor e volúpia daquele braço, pressentiu Eva que haviam descoberto o perigoso fruto. Mas o sumo bem, que se lhes deparou, era mais forte que tudo – Deus, a angústia, a guerra crónica. O temor de arrostar a cólera divina e o orgulho de devassar os enigmas celestes, por outro lado, mais fogo traziam ao seu fogo. A nuvem oscilou sobre eles e cambiaram as tintas; de escarlate, o ar coloriu-se do oiro do conseguimento, depois do fosco da saciedade…»

Aquilino Ribeiro, in «O Jardim das Tormentas»

sábado, janeiro 05, 2008

Afectuosamente



Lembras-te, meu amor,


Das tardes outonais,

Em que íamos os dois,

Sozinhos, passear,

Para fora do povo

Alegre e dos casais,

Onde só Deus pudesse

Ouvir-nos conversar?

Tu levavas, na mão,

Um lírio enamorado,

E davas-me o teu braço;

E eu triste, meditava

Na vida, em Deus, em ti…

Teixeira de Pascoaes






O mundo que eu construí é só meu, embora caiba por lá o mundo inteiro.

A minha casa à beira do rio, o rio que crescia nas Chuvas e enchia as lagoas das margens, o rio que subia, subia e cobria os capinzais e brilhava então para a casa grande. Os animais que moravam por ali tinham de sair desabrigados para as flechas ou tiros que os atingiam. Naquele tempo não me feria a desonestidade da astúcia humana para com os pobres animais indefesos, a minha insensibilidade habitava-me, completamente imune à dor alheia. Depois de mortos não passavam de carne para servir à refeição, eram tapetes lindos para o quarto, até carteira bonita para oferecer à mãe.

Três, quatro dias, durava o espelhado junto ao rio lá em baixo e então muitas coisas aconteciam.

Um dia trouxeram-me uma espécie de cachorrinho que apenas chiava. Tinha sido resgatado quando a sua mãe raposa o transportava nos dentes para um lugar seguro e havia encontrado a morte. Cabia na palma da minha mão e escondia a cabeça e o corpo onde pudesse, assustadíssimo. Acabei criando-o a biberão e cresceu selvagem e bonito, apenas permitindo que eu me aproximasse dele, agredindo quem quisesse deitar-lhe a mão. Foi uma experiência fascinante porque fui dele a referência de protecção e ele foi-me fiel. Até ao dia em que eu fui obrigada a quebrar o elo que nos unia e a entregá-lo ao Jardim Zoológico, perante a ameaça que recairia sobre ele, caso o deixasse livre.

A outros animais servi de ama, principalmente cães e gatos, até a uma cabra doméstica.

Da minha relação com os animais prevalece uma intensidade emotiva nem sempre amável, quase sempre intransferível, sempre insondável para o ser humano comum.

Mas é o mais puro dos sentimentos que alguma vez conheci porque nada o distrai do puro afecto, nada o demove do ponto de referência.

Não falha. E confia. Não é humano.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

O Encontro



Encontrei-o no caminho.
A água não turvou seu sonho,
nem se abriram mais as rosas.
Mas o assombro entrou-me na alma.

Gabriela Mistral



A hora é o tempo certo para acabarem os minutos, tal como o dia acaba as horas, o mês os dias, o ano os meses, depois o lustro, a década, o século e por aí fora.

Só a eternidade não tem fim. Ela, supõe-se, acaba a vida. E eternidade é uma palavra bonita em que cabem todas as promessas, todos os credos, todos os desejos. É lá que vive o sempre.

O crescimento do ser humano, como tal, é proporcional à escravatura de si próprio. O instinto opõe-se de início a qualquer mudança porque é naturalmente livre e a História regista provas irrefutáveis dessa constatação a cada passo, paralelamente à sujeição imperativa do progresso.

Se de repente a denúncia desse cativeiro chamado organização das sociedades nos conduzisse a um acto terrorista cujo alvo a atingir fosse a notação do tempo, a resposta seria apenas uma questão de fantasia.

O tempo poderia não existir. Seria bom descontruí-lo como se tomando nas mãos um arco-íris e ir desembrulhando as cores.

Quebrando todos os relógios, acabando com os horários das escolas. As crianças teriam um lugar de encontro com o saber (Agostinho da Silva assim falou), quando quisessem, quando estivessem cansadas de brincar, quando sentissem necessidade de saber como construir um novo brinquedo. Não haveria professores, porque todos seriam mestres de um saber a partilhar. Haveria permuta de bens, uns viveriam de dia, outros de noite, sem hora marcada de comer ou deitar. Voltaria a haver quem olhasse as estrelas e tocasse umas cordas em melodia para acordar o sol.

Não haveria mulheres sós, aprisionadas, violentadas, excisadas, porque elas estariam unidas, seriam olhadas como as mães dos homens, elas decidiriam quando o tempo de parir.

Não haveria religiões porque todos saberiam dar-se as mãos no tempo certo.

Não haveria tempo, haveria paz.