sexta-feira, abril 28, 2006

Serra Linda

«A grandeza igualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais era se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sobre as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante… Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos»
Eça de Queirós




Do alto da serra dos Candeeiros já não se lobrigam candeias a alumiar o caminho das diligências e viandantes e o tempo dos pinheiros copados e esguios perdeu-se há mais de trinta anos. O fogo, o grande destruidor.

Em Angola sempre convivi com queimadas sem que lhe associasse esta função devastadora. Depois, lá por casa as queimadas eram deliberadas, e o sentido do vento era cuidadosamente estudado antes, contando-se ainda com os imprevistos na direcção do vento. O fogo sempre implicou destruição, claro, porém benéfica, pois combatia os répteis, os bichos venenosos, era sinónimo de limpeza e renovação. Eu própria adorava ir, nos entardeceres de cacimbo, queimar em volta da casa, junto aos currais do gado, ao redor das capoeiras e nos locais de pasto, bem espaçado no tempo para que os animais tivessem sempre um pouco de verde para comer. É que, uma semana depois da queimada, logo aquela África quente e pujante despontava em capim novo.

Aqui o fogo confrange-me. É mais duro, mais destrutivo, a sua maldade perdura porque não tem adversário. Trinta e tal anos depois do fogo na serra, a destruição permanece. Aflora a pedra que o musgo e as madressilvas vestem com pudor, tufos de verdura preenchem as terras sustidas que a erosão permite, brota o azevinho a medo, cresce e floresce o alecrim.














Mas a vista do alto da serra é um esplendor de beleza a desfrutar nestes dias claros de Primavera. A vista alcança o casario longe, toda a região nascida à sombra do Mosteiro cisterciense quase milenar que teve uma importância relevante na ocupação e consolidação do país que é hoje Portugal, densamente povoada de gentes laboriosas e fartos pomares.

A paisagem muda com o passar dos anos mas a graça persiste numa paisagem por vezes lunar, rasgada pelas pedreiras que dão vida a quem lá mora e dia a dia ocupada pelos gigantescos moinhos que captam a energia eólica que o sábio povo já tinha descoberto quando deu nome às suas terras: Vale de Ventos, Casal Ventoso…

quinta-feira, abril 27, 2006

Cravos e Cosmos


Desatempadamente vou falar hoje da Revolução dos Cravos, do 25 de Abril, da queda da ditadura, do que lhe quiserem chamar. Digo fora de tempo, porque na verdade este dia ou o que ele significa para os portugueses que somos hoje, só é lembrado neste dia do calendário, salvo o seu aparecimento muitas vezes despropositado pela ala política dita de esquerda – e esquerda radical se quisermos (ou quiserdes, que esta palavra ainda consta das gramáticas…) nos discursos onde não há grandes argumentos e portanto há que meter por ali o 25 de Abril!

Não vi televisão nesse dia de 2006, não vi onde foram as comemorações, não li jornais, passei como que três dias no limbo. Também principalmente não ouvi o discurso do nosso Presidente da República de quem vou ter de habituar-me a ouvir aquele português ciciado, nascido para falar inglês (talvez…), mas enfim, respeito muito a democracia e deposito as maiores esperanças no nosso Presidente eleito pela vontade expressa do povo. Nunca será o nosso presidente de lágrima ao canto do olho, o nosso pai da pátria de ar bonacheirão, mas as coisas bonitas são irrepetíveis.

Subiu na minha consideração por não ter aparecido de cravo ao peito, pelo menos mostra coerência e isso agrada-me. O que é que o cravo tem a ver com a lapela (estou a ser educada, mas espero que desta vez me compreendam)? E o importante não é o cravo: c’est la rose l’important ! Acho tão bonito que lhe chamem a Revolução dos Cravos, gosto tanto de cravos, acreditem, é até uma das minhas flores preferidas por razões várias; os vermelhos então são lindíssimos e nem por isso tenho cravos vermelhos na minha sala, tenho cosmos também vermelhos. Sabem o que são cosmos? Que cresciam espontâneos por entre as casas ainda por construir nos bairros novos da cidade mais linda do centro de Angola?

Quem viveu como eu em Nova Lisboa sabe de certeza o que são cosmos!


E respeito muitíssimo a Revolução dos Cravos, bendigo-a, e acho até que seria o único feriado a manter-se em Portugal se eu mandasse um dia só neste país. Para além de acabar com a parafernália de feriados religiosos que ninguém sabe por que existem – com as devidas excepções que fazem parte da nossa tradição ancestral – deixaria apenas o dia do Trabalhador e o dia de Portugal e das Comunidades. Varria tudo o resto de uma só penada. O que é isso de estarmos na União Europeia e festejarmos a nossa «independência» da vizinha Espanha? Mas, adiante, que já estou a fugir ao tema.

Eu já era mãe quando chegou o 25 de Abril. E o pior de tudo, o pior, é que eu não sabia até aí, não tinha sequer dado conta que, para vir de Angola a Portugal (portanto dentro do mesmo país) se viesse sozinha ou com os meus filhos, teria de pedir autorização ao marido para o fazer…! Aqui tenho de recomendar a leitura do «Ensaio sobre a Cegueira» que foi o livro que me reconciliou com o saramaguês…

Dizem-me «daqui e dali» que gostavam que se vivesse uma semana nas escolas em ditadura. Sim, de acordo, mas ditadura a sério e nem todos sabem muito bem o que é isso. Queria contestar uns pequenos nadas…

Eu nunca usei bata nos dois colégios que frequentei: um ano apenas o Alexandre Herculano e dez o D. João de Castro, ambos colégios mistos, graças a meu pai que era uma pessoa esclarecida; e não foi isso que me fez sentir mais ou menos diferente ou sequer igual aos meus colegas. Daí eu achar bem que se usasse batas nas escolas, i.e, uniformes, a exemplo do que se vê em novelas para jovens: uma t-shirt com o emblema da escola e depois liberdade nas «jeans» de saia ou calça. Algo que evitasse melindres das meninas em idade de fraldas a sentirem-se mais do que a(o)s outra(o)s porque usam só roupas «de marca». Eu usei bata apenas como professora e dei-me sempre bem com ela!

Mas devo dizer que me sentia revoltadamente diferente sentando-me obrigatoriamente nas carteiras junto ao professor só porque era menina; sentia-me profundamente desesperada quando fugia nos intervalos para a zona destinada aos rapazes (tinha um irmão mais velho 3 anos) para «jogar à bilha» (berlindes de aço retirados das rodas de bicicleta, quanto mais pesados, melhor) e o «senhor prefeito» me ia buscar pela orelha pre…ci….sa….men….te quando tinha o jogo na mão, praticamente ganho; quando jogava «às queimadas» (agora o jogo do mata, que nome horrendo!) no recinto marcado em toda a volta por mangueiras enormes onde os rapazes podiam subir às mangas e eu não; quando não podia ir de calças para escola e tinha de descer pela escada das raparigas; ah, no dia dos exames na escola oficial, quer na 4ª, exame de admissão ou 2º e 5º do liceu, os rapazes tinham de apresentar-se de gravata. Eles frequentavam ao sábado de tarde obrigatoriamente Mocidade Portuguesa, onde aprendiam a marchar e a fazer a continência nazi, mas tinham aí educação física e as meninas eram obrigadas a estar fechadas numa sala a aprender arte e bordados. Isto sim, era descriminação, isso era ditadura!

Também não concordo quando dizem «daqui e dali» que nós, os professores, não iríamos notar muito a diferença, porque iríamos sim! Os alunos não devem levantar-se quando o seu professor entra na aula, mas devem fazê-lo quando entra por exemplo um elemento do Conselho Executivo ou qualquer professor, ou qualquer adulto, porque se entra e interrompe a aula, tem fortes motivos para o fazer (não é suposto as aulas serem sistematicamente interrompidas pelos funcionários pelos motivos menos óbvios). Ensina-lhes o respeito pelas hierarquias, tão importante que existe até entre os animais que vivem em sociedade! E a sala de aula não pode ser um lugar onde «vale tudo»!

Nos termos – ultrapassados já – em que funcionam as aulas com verdadeiro rigor tirano de entradas controladas, é assim que deve ser. Diferente seria se houvesse um encadeamento e interactividade em trabalhos de grupo em que os alunos continuam o seu trabalho sem reparar sequer em quem entra ou sai porque estão verdadeiramente ocupados e interessados na sua tarefa do momento. Mas esse é outro cantar, liberdade com responsabilidade ainda não.

É o cantar de Abril que vai chegar; a democracia constrói-se, vai amanhecendo devagar, o sol não aparece de repente no alto do céu. Nós (vós de preferência…) deveremos estar atentos para que haja nuvens mas não grandes tempestades, estabelecendo regras firmes mas unânimes nos seus objectivos. Olhem as abelhas, as formigas, o salalé…


terça-feira, abril 25, 2006

25 de Abril


...Pergunto à gente que passa
Por que vai de olhos no chão
Silêncio é tudo o que tem
Quem vive na servidão

Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa

Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não
Manuel Alegre





Embora sem cravos, há vermelho por toda a parte para festejar Abril!




segunda-feira, abril 24, 2006

Os Meus Amores

... Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é êsse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sôbre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.

À memória de João Guimarães Rosa por Carlos Drumond de Andrade em 21.XI.1967

Manhãzinha e o Velhote, pequenino e frisado de cara e cabelo, surgia no alpendre quando a mãe cuidava dos seus gerânios, entre assobio e cantarolar ...ssi...ssi...ssi...ssu...ssu...ssi..., sempre a sorrir sem dentes por entre rugas e covinhas, sem um cabelinho branco. Nas mãos a tigela funda de esmalte para levar as batatas, servia de batuque a anunciar a sua chegada, pedindo à senhora instruções para o almoço.

O Velhote já era o cozinheiro da fazenda quando eu nasci e a minha mãe tinha por ele um carinho profundo pelos cuidados e compreensão de que ele sempre a rodeara quando recém-casada e ainda menina, se vira sozinha com meu pai, longe de toda a civilização. Nunca a ouvi dar-lhe a mais pequena admoestação. Quando um dos meninos aparecia febril, sem apetite, ou levemente constipado, ele imediatamente matava uma galinha e fazia canja. «Ó Velhote, parece impossível, não era preciso…!» «Precisa, precisa, senhora, logo, logo, passa!!»

Nada a fazer, que já tudo estava feito.

Pequenina, eu cirandava por ali, vendo-o nos seus afazeres. Batatas, sempre batatas. Todos os dias ele cozia batatas e todos os dias eu via as batatas serem passadas pelo passador de esmalte azul, com uma moca de madeira. O meu poder de comunicação nessa altura era decididamente reduzido, pois eu acho que o Velhote não me entendia; eu percebia-o. Porém o meu português não era suficientemente apurado pela certa, e o dele deixava muito a desejar. Respondia-me sempre lá do fundo do seu sorriso enrugado onde até os olhos desapareciam.

- Vió...ó...ó...
- Quéevèèè...?
- Porquê Vió todos os dias esmaga batatas?
- É prá sopa, Minina.
- Tem mais batatas?
- Sim, Minina.
- E vai fazer a mesma coisa?
- Sempre faz assim mesmo.

Mantinha-se a dúvida. Por azar, nos dias em que eu o via passar as batatas, na mesa apareciam batatas inteiras. O Velhote era mágico, decididamente.
Não recordo quando esta confusão se desfez, mas ficou-me esta reminiscência da alta infância. Do tempo em que havia laranjeiras até à entrada da porta e todo o quintal era um imenso pomar sempre verde.

(Ficou por lá, no meu álbum, uma fotografia do Velhote, comigo ao colo e segurando um prato de comida no mesmo braço em que eu estava. O outro braço, com um garfo na mão apontava qualquer coisa no alto da laranjeira sob a qual passávamos. Parece que só ele conseguia, sem choros, fazer-me engolir o que eu sistematicamente recusava na mesa. Conforta-me que sempre o deliciei pela vida que com ele compartilhei até à minha adolescência, comendo com apetite e louvando tudo o que vinha feito de suas mãos.)

domingo, abril 23, 2006

Sentinela

«…E impondo silêncio ao rebanho, que acabara de beber, pôs-se atentamente à escuta do tilintar dos chocalhos na margem oposta.
“O rebanho parecia ser o mesmo, lá isso… Agora o pastor é que podia ser outro que não a Rosária…”
Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro e, puxando para diante o bornal, feito da pele de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua flauta e pôs-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rústica.
No mesmo instante, uma voz sonora gritou-lhe:
– Eh lá, Gonçalo, és?
O pastor desatou a rir.
– Houlá, Rosária, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!
E logo a voz fresca da rapariga lembrou:
– Não te esqueceu a moda, rapaz!
– Isso esquece ela!... Ouviste, Rosária? – Se outra fosse que ma tivesse ensinado…
Nesse meio tempo já o Gonçalo tomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosária. Mas primeiro perguntou:
- Boto pela ponte ou és tu que vens, ó cachopa?...»

Trindade Coelho «Os Meus Amores»


Esta chuva teimosa que não deixa sorrir o sol encharca os botões de rosas que espreitam ainda escondidas no seu manto verde, entreaberto de promessas.

A Primavera não deixa de repetir-se como uma promessa e por isso se mantém a mais bela estação do ano. É o início, o despertar, o primeiro raio que aquece, o primeiro amor que chega e logo fenece e esquece para um registo diferente do mesmo.

É o amor que nos une em todas as circunstâncias e sem ele a vida nada era que coubesse na imensidão do cosmos. Somos nós que temos de encontrar o caminho que nos rege para aceitar repetidas primaveras quantas vezes invernosas, quantas vezes chuvosas, ventosas, tempestuosas, mas sempre de esperança porque o verão está a chegar, porque o outono vai varrer as folhas e o inverno traz o repouso. Nunca eterno, porque tudo renasce na primavera de novo. Somos nós o grande senhor que nos conduz, que nos mata a sede, que nos une, que nos liberta. Todos os seres da Terra.

«…Et ainsi jusqu’au simple berger. Car celui-là, qui veuille quelques moutons sous les étoiles, s’il prend conscience de son rôle, se découvre plus qu’un serviteur. Il est une sentinelle. Et chaque sentinelle est responsable de tout l’Empire.»

(Saint Exupéry)

quinta-feira, abril 20, 2006

Desafios...

Lá me chega um novo desafio da parte da Teté que tem sido um doce para mim, dando-me o ânimo que nem sempre me assiste. Ora, como ela merece, tive que dedicar-lhe algo que se insere, quer no projecto que tento levar avante sobre recordações da primeira metade da minha vida passada no continente africano, quer na terra que reverdece a custo e que muito cara é à Teresa: Moçambique.








A Casa Madre Maria Clara destina-se a acolher meninas abandonadas, órfãs ou em situação de risco.
Está situada na Missão de S. José de Lhanguene, em Maputo, Moçambique.
A Casa Madre Maria Clara acolhe actualmente mais de cem meninas em regime de internato, com idades compreendidas entre os 1 e os 18 anos.

Os objectivos da Casa são os seguintes:

  • Promover e garantir a educação da menina em situação difícil, recuperando e desenvolvendo os valores pessoais, culturais e morais, tendo em vista uma plena integração na sociedade;
  • Garantir a realização pessoal das meninas de hoje, para que se tornem modelo dinâmico das gerações vindouras;
  • Providenciar os meios de formação e educação adequados aos diversos níveis etários;
  • Proporcionar um meio ambiente estimulante, de respeito individual e de solidariedade, capaz de consciencializar as futuras mulheres do seu papel construtivo e insubstituível na sociedade e na família.


Esta casa está sob a responsabilidade das Irmãs da CONFHIC

As Irmãs desta Congregação trabalham em favor da população mais carenciada. As suas actividades são muito diversificadas: promoção social, actividades no campo da Saúde, da Educação, a catequese, acolhimento de crianças e assistência a idosos desfavorecidos. Porém, sempre dirigiram uma atenção privilegiada aos mais necessitados da sociedade, particularmente às crianças. Nesta casa, a educação integral das meninas é acompanhada e supervisionada por estas Irmãs.


Estas crianças beneficiam duma educação integral, sendo-lhes oferecida uma formação escolar, orientação espiritual, bem como oportunidades de adquirirem conhecimentos teóricos e práticos que lhes possam ser úteis para a sua vida futura: costura e outros trabalhos manuais; prática de culinária, de horticultura e pecuária.
A educação destas meninas é acompanhada e supervisionada por seis irmãs franciscanas hospitaleiras. Todo o empenho vai no sentido de criar nelas um espírito de família. Para tal, todas participam, de acordo com as respectivas idades, na planificação e execução das actividades e tarefas da casa.
Quanto ao aproveitamento escolar, tem sido muito positivo: aproximadamente 95% passam de classe todos os anos.

Quais são as necessidades da Casa Madre Maria Clara?


De forma resumida, podemos descrever as necessidades da Casa da seguinte forma:

  • providenciar alimentação e vestuário
  • providenciar material escolar
  • garantir os meios de conservação, higiene e manutenção dos espaços de habitação
  • desenvolver um programa de actividades extra-curriculares culturais, desportivas e recreativas, adequado a cada faixa etária
  • promover actividades pré-profissionais e de subsistência concretizadas em trabalhos de costura, culinária, horticultura, jardinagem, criação de animais, dactilografia, utilização de computadores, e outras
    aprendizagem de noções básicas de saúde, higiene e puericultura

Apadrinhe uma criança


Esta casa acolhe mais de 100 meninas, dos 1 aos 18 anos. Quase todas são órfãs de pai e mãe, devido à guerra ou a doenças e muitas estavam abandonadas na rua e em situação de risco. Estas crianças têm vivido graças à solidariedade de pessoas como você!Sim! Você pode apadrinhar uma criança em Moçambique!
Após a inscrição, ser-lhe-á enviada uma nota biográfica e fotografia da sua afilhada.
Você acompanhará o desenvolvimento da sua afilhada, através dum relacionamento por carta, aconselhando-a, incentivando-a, e ela sentirá que é amada e respeitada.
Não existe nenhum compromisso legal com a sua afilhada.

Mais informações na internet, em http://casamariaclara.pt.vu

quarta-feira, abril 19, 2006

Dor de Escrita

«Sou mais alto do que a palmeira,
porque os meus olhos chegam às palmas,
chegam às aves voando por cima das palmas.

Sou mais longo do que um rio,
porque ouço o longínquo rumor do mar
ou fechando os olhos vejo o fulgor das praias.

Sou mais poderoso do que uma leoa,
porque a minha escrita chega mais longe que o seu rugido,
chega às mãos da minha amada, a dor escrita,
chega mais longe que o rugido,
a dor escrita chega às mãos da minha amada.»

Misquitos - América Central (trad. de Herberto Hélder)

O primeiro estádio de desenvolvimento literário é o lirismo. São as nossas experiências individuais que apetece contar, é o nosso subjectivismo que pretende manifestar-se. A vida depois ensina a objectividade: deixa de haver lugar para divagações de tipo romântico e se há algo a dizer que seja claro e rápido. É o que os outros pretendem de nós, só que nem sempre é o que somos capazes de fazer. Porque a nossa realidade não está por aí, clara e nítida e rápida. Ela está bem cá dentro e nem sempre clara, nem sempre pronta, nem sempre consciente, nem sempre explícita para nós próprios. Por isso nunca é fácil escrever; é que por entre os dedos correm, além da nossa vontade, o livre arbítrio da nossa intimidade. E cito Michaud: «Não se olhem ao espelho; homens, contemplem-se no papel!»

A nossa fazenda era, como já referi, o pequeno mundo onde se esgotam os meus sonhos de criança e de adolescente também. Era uma habitação enorme, com portas e janelas altíssimas de madeira, e ainda recordo a monumental chave da entrada principal da casa que teria uns 30 cm de comprimento. Rodeava a casa um muro enorme de adobe e, da parte de fora dele, um fosso de cerca de um metro de largura que se mantinha sempre limpo para evitar a entrada de animais menos desejados, como cobras e quejandos. Dentro do muro, a horta e o pomar imenso de larajeiras e tangerineiras; também cresciam nespereiras, mangueiras, figueiras, uma pereira. Ah, e a goiabeira, junto ao tanque, sobranceira à vala. Os caminhos da horta eram marcados a plantas de abacaxis, frutos suculentos e dulcíssimos como nunca voltei a comer. Havia ainda a loja e o armazém e uma parte da casa que esteve a cargo, desde que me lembro, do Timóteo, um primo e afilhado de minha mãe, ido de cá ainda novo, a seu chamado.

Era o local das férias grandes, principalmente porque com elas coincidia a época da colheita do milho, no cacimbo, que ia de Maio a Agosto. Vinham os avós de Luanda, a tia e mais tarde os primos, vinham os amigos, deles e nossos, era a época mais esperada do ano, embora fossem frequentes as idas ao longo do ano. Meu pai nessa altura ajudava o Timóteo e nós preenchíamos o tempo de mil maneiras. Aqui festejou connosco um aniversário de meu pai, alguém que já não está entre nós e que foi grande na moda portuguesa. O Zé Carlos, na altura um pequenito gorducho e alegre que pertencia com minha prima a um grupo de teatro (Cremilda Torres) e já revelava manifesta inclinação e jeito para pintar as amiguinhas e fazer penteados...

Lá para os finais da colheita, acontecia por vezes aparecer algum “Seculo”, velho idoso e respeitado, que só muito esporadicamente saía de casa. Eram-lhe prestadas certas deferências e na loja, nesse dia, as conversas eram mais moderadas, com cumprimentos efusivos e respeitosos. Meu pai também conversava alegremente com ele, entre palmas e risos, pois as recordações de episódios passados sucediam-se e eram do agrado de todos. Cultivava-se ali o dom da conversa e o diálogo entre os dois “Seculos” era escutado com devoção. Nunca ouvi que tratassem meu pai por “Tchindére”, designação dada a qualquer homem branco, mas sempre “Sècúulo”, com alongamento da vogal da sílaba média e abertura completa do e.
Tendo sido solicitada a presença da “Queve”, meu pai veio um dia buscar-me e levou-me junto de um velho respeitavelmente sentado numa cadeira, com umas barbas enormes e lindas, completamente brancas. Ele quis apertar a minha mão mas eu encolhi-me medrosa, pregada a meu pai, pois a sua figura, por insólita, assustou-me. Pareceu-me pequeno porque se manteve sentado, e com umas vestes escuras que o cobriam até aos pés. Ainda hoje recordo perfeitamente aquela aparição e durante alguns anos receei que ele voltasse a surgir diante de mim. Concretamente, não sei a razão desse temor, mas prende-se com as histórias que acerca dele contavam os criados mais velhos da casa.

Anos mais tarde, recordo ter ido, desta vez cumprimentar, a velha mãe do nosso cozinheiro Manuel, também Mestre-Escola da aldeia. Era uma Senhora sem idade, de rosto feio mas muito afável, que não falou, pelo menos diante de mim, apenas sorrindo e meneando a cabeça ao que se dizia para ela e por ela. Na sua frente se contaram histórias maravilhosas de pedras preciosas que ela possuía (possuíra?) e de uma mina de ouro que por ali existira mas que seria fatídica para quem tentasse tocar nela. Falava-se de homens que levavam esse ouro ao longo do rio Queve até Novo Redondo, onde seguia em barcos para o Brasil. Meu pai parecia dentro de tudo, mas às minhas perguntas respondia do mesmo modo evasivo deles, e desisti de procurar algum fundo de verdade. O Manuel recusava-se simplesmente a falar disso. Garantia, isso sim, que vira uma vez, há muito tempo, uma pedra grande na mão da mãe que brilhava esplendorosamente ao sol.

Até muito tarde, meu Pai foi para mim também um homem sem idade, daquela geração de “Secuulos”, sábio e poderoso, alguém que viveu todos os mistérios e lendas, tornado bondoso pela longa idade, paciente e calmo, dono da Morte.


segunda-feira, abril 17, 2006

Novos tempos, velhos tempos

« – Era assim a floresta? – perguntavam com um arrepio breve e muita admiração as pessoas que visitavam o atelier do pintor. Ele abria os braços, punha-se a rir. Como havia de saber?

Há séculos que os desertos e as grandes florestas e os densos bosques pintalgados de sol tinham desaparecido da face de um pequeno mundo superpovoado, porque a terra era pouca para edificar e para cultivar. Por isso se cultivavam também os oceanos.

Nas antigas florestas da Amazónia havia deslumbrantes cidades de vidro, aeroportos imensos, belas auto-estradas. O mesmo nas de África e da Ásia, mesmo nas do resto do mundo. E os animais, os poucos que tinham sobrevivido ao arrancar das raízes, encontravam-se em três ou quatro jardins de aclimatação.»


Mª Judite de Carvalho (in Os Idólatras)



Era o tempo do milho. Grãos amarelinhos, macios ao tacto, aquecidos, deslizantes. Creio vir daí o meu gosto pelos tons quentes do dourado ao castanho. Nos anos de abundância, o movimento era de tal ordem que não havia tempo de guardar o milho que chegava às arrobas em quindas enormes trazidas à cabeça das mulheres ou em grandes sacas sobre um grosso tronco de árvore bifurcado que dois bois arrastavam penosamente.

Eram então colocadas tábuas de denga (madeira não espontânea, de cor clara, de que era feita a mobília do meu quarto) a barrar a porta de entrada do armazém até meia altura e o milho era despejado directamente para o chão batido. Lá para Junho, Julho, já o milho aparecia por entre as tábuas mais altas, e eu aguardava ansiosa o fim de tarde para ir subir o monte de grãos com a euforia que nos deixava o corpo e cabelo cobertos de escamas. Às vezes um sapato perdia-se pelo meio e servia de pretexto para mais um quarto de hora de brincadeira.

Mas o que eu mais gostava era de acordar de manhã ao som da cantilena dos serventes na faina do tratamento do cereal. Era sinal de vida, de alegria, não eram aqueles dias monótonos e sempre iguais.

Era um trabalho de equipa. A duna de milho descia da porta de comunicação entre a loja e o armazém, que tinha o tapume de madeira, até à grande porta dos fundos do armazém que dava para norte. Aí era colocada a tarara, que iniciava o seu trabalho de manhãzinha e só descansava pelas quatro ou cinco da tarde.

A faina consistia em encher sacos com o milho amontoado, sacos esses que dois transportadores levantavam, segurando um de cada lado, com uma mão em cada ponta de baixo, e que deixavam tombar a parte superior sobre os outros dois braços livres entrelaçados, fazendo uma espécie de cadeirinha para aquele peso de cerca de cem quilos. Iniciava-se então aquele soar... hing- hang ... hing-hang... hing-hang... que se prolongava por todo o dia. Uns levavam os sacos para a tarara, outros carregavam-nos com o milho já tareado para a balança e depois para o fundo do armazém onde eram alinhados e cosidos com fio de sisal enfiado numas agulhas enormes de cerca de um palmo, escuras e achatadas na ponta em que se enfiava o barbante.

Muitas vezes, quando me levantava, pelas sete horas, já lá estava uma camioneta a carregar os sacos prontos de véspera. Esporadicamente, deixavam-me ir ver carregar, o que eu considerava um acontecimento.

sábado, abril 15, 2006

Ruptura



Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho
onde esperei morrer – meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear – tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
– Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe… não andes mais à neve,
de noite a mendigar às portas dos casais.

Camilo Pessanha


sexta-feira, abril 14, 2006

Ressurreição

Tu, bebedor nocturno,
enverga as vestes de ouro,
tuas vestes de ouro e chuva!

Escorreu, ó deus, a água de pedras preciosas.
O cipreste alto transmudou-se em quetzal;
em serpente de quetzal se transmudou a serpente de fogo;
libertou-me a serpente do fogo.

Talvez eu me vá embora, talvez vá, talvez vá embora para me queimar,
eu, a doce planta de milho.
O meu coração é uma preciosa pedra verde,
mas o ouro, ainda o verei dentro dela, ainda verei o ouro.

Quando o meu coração amadurecer,
em júbilo, quando o coração ficar maduro.
Meu deus, faz fremir os pés de milho dentro da terra,
faz crescer os pés de milho.

Poemas ameríndios (trad. Herberto Hélder)


Quetzal ou quanza, já foi angolar ou escudo, hoje corre em dólares e euros.

Em Angola não foram os ciprestes que se transformaram, foi o ouro maior que cintila, que resplandece, o branco e o negro. O branco, o de mil cores, por quem rasgam e dilaceram e chagam e agridem a terra-mãe. O negro que jorra e se esgota, não para alimentar os seus filhos, para os deixar usufruir da prodigalidade com que o céu os agraciou, mas para alimentar as hienas e os abutres, deixando as crias de Angola morrer à fome.

Há 45 anos atrás, eu era uma menina a quem o 15 de Março mudou a vida; já mudara, aliás, a 4 de Fevereiro do mesmo ano. Neste dia foi o princípio da morte de meu pai e o despontar da minha determinação em querer enfrentar o medo.

E consegui. Eu vi o ouro dentro da pedra verde, mas o meu coração só agora começa a maturar, a sazonar. Só agora revive a cor do milho, ouve o calor do milho, cheira o travo do milho verde e doce na massaroca rasgada de folhas ainda verdes e macias.

É preciso semear o milho de novo, é preciso que a chuva embale o milho dentro da terra, é preciso que deus o faça crescer.

quarta-feira, abril 12, 2006

A Minha Mãe


O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além…
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!


O mundo? O que é o mundo, ó meu Amor?
– O jardim dos meus versos todo em flor…
A seara dos teus beijos, pão bendito…

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços…
– São teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.

Florbela Espanca


terça-feira, abril 11, 2006

A Idade é Bonita

A juventude é irreverente e fresca, mas a idade é bonita.

Só a idade madura dá ao Homem a sabedoria da vida e o encanto da beleza, a sensibilidade para a tolerância. A velhice é inexorável e só a iliteracia, a incivilidade e a incultura da civilização actual pode olhar um velho com desprimor.

É o mal do século, dizem os jovens porque se julgam incólumes; é a jóia da coroa, pensam os idosos de coração jovem, de espírito culto, de alma intensa. A saída para o aumento do número de idosos, proporcional ao decréscimo da natalidade, é uma reestruturação das mentalidades, é o retorno às origens, aos povos que ensinam aos mais pequeninos o amor e o respeito por aqueles que nasceram antes de nós. Depois é toda uma educação para o culto do envelhecimento com sabedoria, com tolerância para com os mais novos, para uma transmissão dos valores que nunca deixam de o ser.

Deus Pátria e Família, olhados numa perspectiva diferente da que foi imposta às gerações que findam, compreendidos de uma outra forma mais lata, continuam a ser valores, e valores a respeitar agora e sempre. A família deve ser prezada, a família já nem sempre monoparental e que exige mais tolerância porque polifacetada; a pátria que não é só este pequeno rectângulo periférico dum continente, mas uma parte integrante dele e alargada ao infinito dos falantes da nossa língua que se estendem e mantêm nos cinco continentes; e a religião que não é apenas o culto da «Senhora de Fátima», mas o abraço ecuménico de todas as religiões, a compreensão de que todos devemos respeitar as opções de cada um, professem eles o Cristianismo, o Judaísmo ou o Islamismo – braços afinal de uma mesma religião –, sejam eles Budistas ou Hindus; sejam eles ateus.

Que temos orgulho de ser portugueses, não me resta qualquer dúvida; que temos capacidade para nos impor ao mundo pela positiva, também não. Mas para que se rentabilize todo este potencial é preciso, é urgente, que se invista fortemente na educação não só das crianças, mas de todos nós, colectivamente, seja na postura ecológica, na relação humana com os idosos, no cuidado e investimento nos mais novos, desde cedo, incutindo neles normas e regras definidas com rigor.

Neste momento temos ainda um muito grande obstáculo a transpor que é de cariz económico e sejamos directos: não se pode pensar em cultura com miséria, ninguém aprende nada na escola de barriga vazia. E a fome existe em Portugal no século XXI, e só há fome porque há corrupção; esta é uma palavra feia, mas é só pensar um pouco que a encontramos a todos os níveis porque a nossa educação se faz dentro dela, convive-se com ela desde a mais tenra idade, basta auscultar os pensamentos das crianças na escola. Os pais das gerações mais recentes já não ensinam aos seus filhos o rigor da seriedade, do respeito, da verdade; ensinam as regras da competitividade a qualquer preço. Vale tudo. Depois, as palavras adquiriram um valor semântico diferente: sinceridade significa atirar na cara de um professor, por exemplo, que ele não ensina nada; afectividade significa sexo; orgulho, significa soberba; higiene, significa ostentação; saber significa prepotência; amizade não é tolerância e cumplicidade, é puro interesse ocasional.

Há que repensar o futuro. As gerações mais novas que se cuidem.

sábado, abril 08, 2006

Natureza Sou Eu

«Mas nem foi preciso dobrar o preço; Pedro Curimba, coçando a carapinha já brancacenta, argumentou:
– É um favor que ocê me fais, seu Zé Orocó.
– Mas por quê? A égua é doente?
– Duente coisa nenhuma, mais sadia que o Sor.
– E então?
– Num gosta de fazê nada que a gente ensina. Trabaio que é bão, nada.
– E o que ela faz então?
– É vagabunda, passeadera. Falô em passeá cum ela, pronto, a vida tá feita.
– Mas é justamente uma égua assim que eu procuro. Quanto mais passeadeira melhor.
Olharam para a égua baia no curral. A bichinha balançava as orelhas, espiando os homens com seus olhos inocentes.

(…) Um começo de alegria brotava no seu peito. Agora, quando se lembrasse das coisas, só pensaria em pedaços bonitos.
Foi de tardinha que se deu o grande milagre.
Amarrara a eguinha passeadeira e fora fazer fogo. Iria cozinhar mais um pedaço de carne no espeto para comer com farinha. A eguinha mastigava o capim verde e tenro.
A tarde descia naquela mania de nunca ter pressa, na sábia compreensão da natureza. Zé Orocó sentou-se no chão, depois se deitou no capim. Apanhou um brotinho e ficou mastigando. “Sofrê” fazia ninho num pé de cagaia. Jaó dava pios de tristeza por todo o canto.
– Que bom, não?
Deu um pulo porque ouvia voz e não dissera nada.
– Que espanto é esse?
Não podia crer; a eguinha estava falando.
– Você também?
– Eu, não, você…
Aí Zé Orocó riu. Mas riu com vontade, com aquela vontade reprimida durante tantos anos.
Parou, desconfiado ainda.
– Então você também fala? Que bom!
Aproximou-se mais do animal. O coração rebentava de alegria. Tudo voltava de novo. Poderia acreditar em Calamantã, em Urupianga. Estava livre. Livre para ver beleza, desde zumbido de irapuã até ao nascimento de uma folhazinha. O céu voltara a ter todas as estrelas e o vento aquela carícia de mão. Até os cabelos brancos voltariam a ter beleza.
Graças a Deus que sou louco de novo!
Então não se conteve. Apertou a cabeça da eguinha contra o peito.
– Você é um amor, sabe?
– Eu é que digo isso de você, Zé Orocó.
– Sabe até do meu nome, hem?
– Os passarinhos me contaram. Eu estava doida pra você me comprar…»!

José Mauro de Vasconcelos (in «Rosinha Minha Canoa»)


sexta-feira, abril 07, 2006

S. Paulo de Luanda

L’eau!
Eau, tu n’as ni goût, ni couleur, ni arôme, on ne peut pas te définir, on te goûte, sans te connaître.
Tu n’es pas nécessaire à la vie; tu es la vie. Tu nous pénètres d’un plaisir qui ne s’explique point par les sens.

Saint Exupéry (in «Terre des Hommes»)

Uma desconfortável e descomedida dor de cabeça conduz-me sempre à secura dos sentidos só ultrapassável com o regresso ao líquido pré-natal. Imerso na água, o corpo adquire a funcionalidade que requer o quotidiano, a força do chuveiro quente desperta o sentido auditivo que o táctil absorve, quando a visão se esconde atrás das pálpebras fechadas sobre a íris cansada. É libertadora a nudez do corpo dentro de uma massa de água, e nem o odor a cloro consegue importunar-lhe a suavidade.

Falta-lhe aqui o sabor a sal. E o sol. E o vento quente. Imaginar o prazer de mergulhar nas ondas, nadar, ir para além da rebentação, entregar-se ao oceano e deixar-se enovelar pela espuma, depois estender-se na areia húmida e fresca. Correr pela praia enterrando os pés com força, sentir os grãos entre os dedos, na sola dos pés.

É que eu sou de um país onde um vento morno nos empurra para a frescura do mar, a extrair da água o deleite supremo de nos deitarmos nela de costas, com o azul inteiro a entrar-nos pelos olhos até o dourado passar através das pálpebras que os cobrem para não cegar. Parece que me vejo sentada no quebra-mar na maré vazante, deixo as ondas arrastarem o chão onde estou, as mãos fincadas e a areia e as pedras e as conchas a escoarem por entre os dedos, enquanto seca em mim a água deixando as marcas do sal no rosto e o odor nos cabelos…

Éramos meninos e as férias em Luanda acordavam pelas madrugadas na Ilha ou na cabana da Samba, quando a praia deserta se cobria completamente de pequenos caranguejos que deslizavam à nossa passagem num ruído leve e contínuo, como se toda a praia fosse um imenso papel frisado que dedos acariciassem. O sol a pino sobre a areia ardente e a luminosidade intensa sobre o mar impediam a permanência ao meio do dia, havia que aproveitar as manhãs mornas para o sabor da água ali tão perto. E os risos.

O regresso ao planalto limitava-nos a ânsia de entrega à magia da água, tanto pelo clima mais temperado de eterna Primavera, como pelos deveres de trabalho e estudo.

Mas ficava-nos por muito tempo a lembrança das viagens no Kapussoca, ao Mossulo, onde os dias eram maiores, se estendiam pelas praias enquanto havia claridade, pelas sombras das palmeiras, pelas corridas, brincadeiras, pela imensa liberdade de ser.

Revisitar
é proibido.

quinta-feira, abril 06, 2006

Privilégio


A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.
É para o céu que ela canta
Que o céu
Às vezes também é negro.

No céu, tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto…

Aguinaldo Fonseca (Cabo Verde)

É um privilégio ter nascido em África. Não é um lugar comum, é uma constatação. Ter nascido, ter crescido, essencialmente ter sentido, ter sido embalado no berço. No velho ou no novo continente ou noutro qualquer, quem «bebeu água do Bengo…» – por sinal um rio sem sombra de beleza, mas era dele que se canalizava a água para Luanda e foi a expressão que perdurou em Angola – é intrinsecamente diferente dos demais, olha as coisas over the rainbow, e só alguns conseguem entender um africano de alma.

É-o sem dúvida José Manuel Barata-Feyo. Eu não sei qual a terra em que nasceu, não conheço o seu percurso pessoal, apenas literário e social, a sua irreverência sadia, a sua contestação, a sua clareza de espírito, a sua indignação que tão bem consegue transmitir quando escreve. Tudo isto para dizer que numa das suas últimas crónicas semanais da Grande Reportagem, senão mesmo a última, fez referência a um ícone da cultura musical cabo-verdiana. A sua descrição é pura poesia:

«Era de noite, estava calor, ela chegou pela rua de terra batida e escura, descalça e bamboleante, sentou-se nos degraus do bar que davam para a rua, pernas afastadas ao jeito africano, as mãos cruzadas no colo a empurrar a saia comprida para baixo, e eu sentei-me ao lado dela e ali ficámos, os dois, a beberricar whisky, o céu estrelado do Mindelo lá por cima e o piano do Chico Serra lá dentro. Depois cantou. Não nos deixou filmá-la, mas cantou. Com uma voz que nunca saberei dizer. Piaf, a atormentada e Manitas de Plata, o rebelde, tudo misturado e no entanto divinamente genuíno, tudo dez vezes mais e mais quente, forte e livre. Sobretudo livre. Foi há décadas.»

Logo a seguir transmite-nos dolorosamente as suas penas, a sua indignação:

«Ouço o que fizeram a essa voz, aqui, no conforto europeu do nosso frio Inverno, ouço-a aprisionada, contida, digitalizada e aplaudida pelo Olímpia de Paris, ouço Cesária Évora, a voz do Atlântico, e sinto uma pena imensa de os projectores do «Music Hall» e os interesses do show biz terem sido a única alternativa possível para quem cantava com voz de ouro no meio do mar.»

É neste arfar de revolta, agastamento, impotência perante os «sinais do tempo» que encontro o pulsar que diferencia os nascidos e emoldurados neste país, dos homens da diáspora em que me incluo, perdoem a imodéstia, mas não faria sentido se o não dissesse. Meu pai repetia à exaustão que morrer é preciso. E é preciso porque é difícil, cada vez mais difícil, suportar ou sequer compreender a mudança de mentalidades que se vai instalando ao redor de cada um de nós.

Quem resiste é esmagado pela força das massas porque o crescimento desmedido sem a natural selecção das espécies alterou as regras do jogo da natureza e a humanidade cresce desmesurada e incontrolavelmente, nem sempre sendo os mais fortes os de maior elevação espiritual, esta, condenada definitivamente à extinção.

Nada distingue hoje a espécie humana dos demais seres terráqueos, o Homem só vive a luta por comer e não ser comido, tout court
.

segunda-feira, abril 03, 2006

É preciso cantar a Primavera


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui…além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz foi p’ra cantar

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder…para me encontrar…

Florbela Espanca

sábado, abril 01, 2006

(I+E)Migração

Janeiro 1872.
«Agitou-se, agita-se ainda, a questão da emigração. (…)
A emigração, entre nós, é decerto um mal.
Em Portugal quem emigra são os mais enérgicos e os mais rijamente decididos; e um país de fracos e de indolentes padece um prejuízo incalculável, perdendo as raras vontades firmes e os poucos braços viris.
Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a trasbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre. Não é o espírito de actividade e de expansão que leva para longe os nossos colonos, como leva os ingleses à Austrália ou à Índia; mas a miséria que instiga a procurar em outras terras o pão que falta na nossa.
Em Portugal a emigração não significa ausência – significa abandono. O inglês por exemplo vai à Austrália ou à América fazer um começo de fortuna – para voltar a Inglaterra, casar, trabalhar, servir o seu país, a sua comuna, trazendo-lhe o auxílio de uma vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho; para Portugal, o emigrante que volta provido de boa fortuna vem ser um burguês improdutivo, uma inutilidade a engordar.»

Eça de Queirós


Portugal é hoje um país de imigração, mas foi e continuará a ser um país de emigrantes. A alma portuguesa não cabe no pequeno rectângulo da Península que dá a cara da Europa ao Atlântico. Essa foi a nossa maior riqueza (a despeito da opinião abalizada de Eça há um século atrás): a expansão da língua que tanto prezo e sobrevive nos lugares mais inusitados, porque valeu a pena!

O repatriamento dos portugueses do Canadá é tão real e dorido como o daqueles que Portugal e a Europa diariamente colocam fora das suas fronteiras. A conjuntura actual, quer económica quer, principalmente, social e política, requer medidas firmes de rigor que devem ser respeitadas. Os canadianos vivem obcecados com a Segurança, e o 11 de Setembro marcou indelevelmente o continente americano que se julgava a salvo das atrocidades que iam acontecendo pelo resto do mundo. Perceberam que também eles eram vulneráveis.

Quando as primeiras notícias nos chegaram com o impacte das imagens e reportagens da televisão, queimei e escureci por dentro. Mas as notícias directas logo derramaram neve clara e fria nos meus sobressaltos, e assim o meu post desatempado em relação ao calendário climático. Cá ficou um melro escurito a doidejar, mas as notícias foram tranquilizadoras.

O Canadá não descrimina ninguém e eu própria tive oportunidade de o sentir na recente estadia por lá. Razões outras haveria para que fossem deportados, não ditas: decerto teriam sido alertados para a necessidade de deixarem o país com anos de antecedência, o que veio a confirmar o nosso actual MNE.

«Em Roma sê romano» diz um velho ditado e aplica-se a meu ver em todo e qualquer processo de migração de pessoas. Quem emigra leva consigo um património cultural que tem o direito e até a obrigação de preservar, pois são as suas raízes. Este o primeiro aspecto. Mas não tem o direito de impor ao país de imigração a sua cultura, não deve tornar-se colonizador, com todo o sentido pejorativo que adquiriu essa palavra. Ele vai para melhorar a vida, tem de adaptar-se o mais rapidamente possível ao lugar que o acolhe.

Ora, ao que sei, há portugueses que vivem no Canadá há vinte e mais anos e continuam sem falar uma palavra de inglês (ou francês) e, mais grave ainda, convivem entre si no velho espírito português (a que lá chamam portuga) de passar ao lado da lei (não fazer descontos convém a empregados e patrões…) usando de todos os subterfúgios em que são exímios para escapar à vigilância cada vez mais apertada.

Se as leis são rígidas, há que submeter-se a elas. O Canadá é um país com boas oportunidades de emprego, mas é duro, eles exigem integração plena de cidadania para autorizarem a permanência definitiva. É um país novo.

Oxalá quem por lá labuta saiba aproveitar essas oportunidades!