quarta-feira, março 22, 2006

Hora de vésperas

A lareira ainda arde, sabe bem quando a noite chega.

Laivos alaranjados sobre o fundo negro da tijoleira escurecida, o lar cheio de cinza, os troncos de azinho traçados, cativam o olhar perdido e aquietam-no. Um crepitar mais intenso acende outra fogueira noutro tempo, noutro espaço, noutras latitudes.

Os fins de tarde de cacimbo, quando o dia arrefece ao sol-pôr entre as dengas e jacarandás, quando a brisa pára e a serra ao longe se coroa de púrpura, quando os velhos conversam em surdina, quando os lebréus se alongam junto à matilha humana, quando as andorinhas cansadas da corrida veloz repousam sob os beirais e um ou outro morcego ciranda e parece sem tino, uma fogueirinha se acende com carolos e gravetos recolhidos a esmo. Então a quietude se instala e a paz acontece.

A noite chega de manso, acordam os tambores no quimbo, e o serão prossegue na caça aprazada, no tecer das rendas, no contar dos fios, no bordar dos linhos à luz forte do candeeiro, até ao regresso dos caçadores. Lá fora a fogueira ainda brilha; a seu lado os cães, o ciciar dos homens fiéis que guardam a casa e as senhoras.


«Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa
Do tempo em que eu ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e as andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo ia em triunfo ao Céu!...»


Guerra Junqueiro in «A Velhice do Padre Eterno»

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